E se a vida fosse plástico bolha?

Letícia Moreira
3 min readApr 27, 2022

(exercícios despretensiosos de escrita criativa em 15')

06h30 da manhã e tudo correria no fluxo usual se não fosse o barulho agudo de um inseto estridente que girava em círculos desregrados em sua mente. Assim mesmo, tudo corrido e com muitos adjetivos, para te dar conta da dimensão exata e imagética do cenário.

Há momentos na vida que imitam um pequeno bug na Matrix. Não uma falha grave, mas um leve desacerto dos códigos. Nesses momentos, algo sai do eixo e, mesmo que volte, não passa ileso. E nesses momentos — costumo dizer eu, mas não sei se você concorda — temos uma certa mudança de perspectiva. Algo sacode as bases das nossas vistas e a gente percebe, enxerga e sente coisas com uma certa sensatez rara e ocasional, que deixa marcas profundas pelos instantes que vão se seguir.

Neste dia, nestas exatas 06h30 da manhã, pareceu que sua alma, — imagine outra imagem, caso não goste de almas pairando, fique à vontade — mas pareceu que ela saía de seu corpo e se olhava do teto, jogada na cama, com o despertador ao lado, vibrando às 06h30 para anunciar o ritual social ordinário.

Nossas sociedades têm um certo prazer em valorizar ritos laborais. Um tesão mal canalizado por umas virtudes ativas de sujeitos que sustentam os sistemas, que se levantam diariamente para fazer coisas sérias, com pessoas sérias, em lugares sérios em que tudo que se cria é denso e complexo. A existência parece ter a obrigação de gerar algo concretamente útil e significativo. Tudo há de ser grandioso. Nada pode existir por si só, miudinho, apenas por existir, apenas por dar o ar da graça no mundo e só. E fim. Sempre tem algo a mais, algo que retira da vida a organicidade, a leveza e a fluidez.

Foi então que ela se imaginou como um plástico bolha. Ou melhor, que sua vida era plástico bolha. Eu sei que o plástico bolha tem uma funcionalidade pragmática, mas imagine que você já abriu a embalagem e o plástico bolha ficou lá, jogado no chão, à toa. É desse plástico bolha, o resíduo inútil e divertido, que estou falando. Estourar plástico bolha é uma das coisas mais inúteis que fazemos. Inúteis dentro dessa lógica das virtudes da matrix. É um ato que, por si só, já nos dá brechas maravilhosas para hackearmos a matrix.

Jogada na sua cama-vida-plástico-bolha, ela sentiu algo estranho — o nada. Não sentia nada. Na verdade, não era o nada, e isso ela só foi entendendo depois, mas era uma leveza. Como se a existência, naquele momento, se bastasse. A leveza era tão desconhecida que foi logo mal-interpretada como um vazio. Mas, ao contrário, era plena. E ela logo soube.

E foi então que ela quis escrever um novo livro da vida. Mudar o rumo dos capítulos e abrir espaço para criar páginas orgânicas, páginas que não são gramaticalmente corretas ou cultas, que não se encaixam em gêneros literários, que não têm utilidade para o mundo, senão para elas mesmas. O ritual plástico bolha, que é apenas divertido e despretensioso, como um dia jogada no sofá. O cenário de uma vida besta, sem utilidade. E aí, quando a alma despencou do teto direto no corpo, o corpo já estava contaminado pelo inseto barulhento e já não era o mesmo corpo, era outro. E para este novo corpo, agora meio plástico bolha, é preciso um novo mundo, uma nova vida.

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Letícia Moreira

em algum lugar, a qualquer momento, a gente se encontra, só pra se perder de novo. Insta: @lettiemoreira e @maisquesetimarte