Em toda Christine vive sua Lady Bird
Eu não sei quem é Christine, quantas vezes tenho que dizer?
Foi a última coisa que berrei, enquanto batia a porta com toda a força de quem precisava desesperadamente escancarar a si mesma ao mundo. Obviamente, eu não sabia nada disso naquele momento. Tem coisas que só uma ex-adolescente, no limiar confuso e desesperador que demarca os caminhos ao abismo da idade adulta, pode saber. Por isso que hoje o sei tão claramente.
É engraçado como nosso cérebro se empenha em reconstruir a memória dos eventos, elaborando toda uma mise-en-scène segundo regras arbitrárias do inconsciente. É assim que elaboro aquela cena agora: depois de ouvir o estalo da porta seguido de um grito furioso da minha mãe, saí pelo jardim, com a bolsa pendurada no corpo teimoso, o diário na mão, e peguei o primeiro ônibus na parada. Lembro exatamente do tom vermelho desbotado que sobrava no meu cabelo. Na verdade, lembro até o cheiro da tinta, mas isso não vem ao caso para este breve relato dos fatos. Sentada no banco do ônibus, nada ao redor importava além do caderno no colo e o mapa mental estupidamente elaborado na noite anterior. Ali estavam registradas todas as fixações de uma adolescente perdida, minúscula, cuja fome de mundo não cabia nem naquela mente.
Christine é meu nome, assim como Lady Bird também era, e segue sendo, às vezes. Nessa elaboração tardia de memórias soltas, pouco importa o desfecho literal do evento. A questão é que hoje olho para lá e queria sentar com aquela menina e dizer que a vida é mais ou menos assim: entrar numa floresta aleatória, cheia de imprevistos, com um tênis meio gasto e apenas um lanche improvisado às pressas e uma garrafinha de água na mão — é difícil, mas dá pra viver se você for otimista o suficiente para abrir a vista e encontrar tesourinhos perdidos e atalhos possíveis. Existe um pouco de Christine e um pouco de Lady Bird no caderno da vida, porque ele é enorme. Tem horas que eu só queria conseguir gritar de novo que não sou ou que sou alguma coisa, com tanta segurança, e sair por aí batendo portas.
Texto inspirado no filme Lady Bird (2017, dir. Greta Gerwig), um dos meus favoritos. Veja o trailer!